sexta-feira, 23 de abril de 2010

Orfeu - O Mito


Quando Orfeu encontra Eurídice no silêncio opressivo das nuvens e na intensa escuridão do Hades, ela o segue por caminhos espiralados que costeiam abismos vertiginosos bem como por trilhas pouco transitáveis. A alma busca a união com o Espírito, e experimenta uma profunda solidão pelo fato de estar separada de Deus. Em seu isolamento, ela supera a angústia do eu natural e o susto de sua queda nas profundezas insondáveis. Ela confia incondicionalmente em seu guia espiritual, de quem sente a presença e ouve os cânticos, embora ainda não o possa ver. Eurídice consegue escalar o caminho iniciático até o ponto em que pode perceber a brilhante luz do mundo superior através de uma abertura feita no reino de Hades. Esse é o ponto onde irrompe a nova consciência, que ilumina seu caminho. É aí que o mito dá uma guinada incompreensível para muitos: Orfeu, que durante todo esse tempo não havia escutado nenhum passo atrás de si, volta-se para ver se Eurídice o segue. No mesmo instante, ele vê o fantasma de Eurídice, sua bem-amada que, estendendo suas mãos para ele, desliza para trás e volta a mergulhar nas trevas.

Na sabedoria dos Mistérios gregos, esse episódio é a indicação da libertação final, a exemplo de Dionísio, que morre três vezes segundo esses Mistérios. A primeira morte, a morte pela picada da serpente, liberta Eurídice de sua forma terrestre material. Como sua alma ainda não se encontra bastante avançada, ela se deixa prender por intensas paixões e ira, que a fazem recair, na figura de Aristeu, nas trevas do mundo inferior.


Porém o amor a salva: ela é conduzida, passo a passo, para fora dessas trevas até a luz, graças à confiança incondicional que deposita em Orfeu, enquanto o corpo de desejos perde progressivamente poder sobre ela. No instante em que a luz da natureza superior se une a ela, ela pode se libertar definitivamente de sua avidez natural inferior e finalmente submeter-se à morte, que possibilita o verdadeiro casamento entre Eurídice, a alma liberta, e Orfeu, o Espírito eterno. Esta versão nos ensina que Orfeu e Eurídice se unem, e juntos formam, no mundo dos deuses, uma dupla unidade eterna, da qual a constelação de Lira dá testemunho para a humanidade. Orfeu procura por Eurídice, sua alma perdida, no reino de Plutão. Krishna entrega-se às esferas inferiores para salvar seus seis irmãos, dos quais ele é o sétimo. Jesus, conforme é dito, desceu ao reino de Satanás para salvar a alma de Adão, símbolo do homem material. Mas o reino de Satanás seria outra coisa que o mundo material? Descer ao reino da obscuridade e da matéria, ascender e ser restabelecido como “sol bem-aventurado” representa o conteúdo mais importante de todos os ritos iniciáticos que podemos encontrar tanto na história de Orfeu, de Hércules como na história de Krishna e de Cristo. Segundo a lenda, foi Orfeu quem deu ao verbo solar de Apolo um novo poder, revivificando e devolvendo as energias aos Mistérios de Dionísio. Em todos os mitos e lendas o Logos solar é conduzido à morte e ressuscita após haver novamente transmitido e ensinado o Verbo. Orfeu, o hierofante e sumo-sacerdote iniciado diz: “Eu vos revelarei os segredos dos mundos, a alma da natureza e a essência de Deus. Um único ser reina tanto no mais elevado dos céus como no abismo terrestre: Zeus, o deus do trovão, Zeus, o etérico. Ele é a mais profunda sabedoria, o pensamento mais poderoso, o amor mais precioso. Ele reina tanto nas profundezas da terra como no mais alto dos céus. Quando as lívidas sombras tiverem se ajuntado ao coro flamejante de Deus, elas se inflamarão como tochas e Dionísio ressuscitará inteiro no cosmo, ainda mais perfeito, ainda mais vivo que antes”. Este é o mistério da morte de Orfeu-Dionísio.

Cheia de amor e de devoção, Eurídice espera apaixonadamente por Orfeu, o Espírito, seu esposo, que sempre a busca. Orfeu e Eurídice Óleo sobre tela Robinson Tuon, Brasil, 1993.

FONTES: Kruisheer, J., Les rites, mythes et légendes initiatiques des mystères anciens, L. J. C. Boucher, 1969. Schuré, E., Os grandes iniciados. São Paulo: Madras,2005. Revista Pentagrama Lectorium Rosicrucianum - 2007